PPT Pesquisa Habitos Culturais - 04-2024 - 36

Hábitos Culturais Pré e Pós Covid: a Perspectiva dos ACCs

Jenyffer Nascimento

Ainda posso lembrar com entusiasmo daquele dia ensolarado, quando saímos pela primeira a campo caracterizados com a nossa camiseta do Agente Comunitário de Cultura, caminhando entre os becos e vielas do Jd. Ibirapuera. Andávamos acompanhadas das Agentes Comunitárias de Saúde que nos guiavam e nos apresentavam para as famílias e falavam sobre essa parceria importante entre a saúde e a cultura, que se expressava no slogan do nosso projeto “quem consome cultura, adoece menos”, uma frase atribuída ao cantor, músico e compositor Chico César.

Este ano foi 2016, mesmo ano em que o Brasil sediou as Olimpíadas no Rio de Janeiro e assistiu ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff, ano em que o empresário João Dória foi eleito prefeito na cidade de São Paulo. Ano também de aprovação da Lei de Fomento à Cultura das Periferias (uma lei escrita e articulada pelo Movimento Cultural das Periferias – MCP, em diálogo com os movimentos, coletivos e fóruns de cultura periférica de toda a cidade), promulgada pelo prefeito Fernando Haddad no último ano do seu exercício.

Cito esses fatores, não na intenção de uma análise mais aprofundada, e sim, para situar e contextualizar quais atravessamentos e disputas estavam ocorrendo na cidade/país, como se manifestam no cotidiano da vida na periferia, já que não estávamos isolados da realidade social e política, apesar de sermos ignorados na maior parte das vezes como sujeitos históricos, mas isso é papo longo e vamos deixar para uma outra oportunidade…

O embrião do Agente Comunitário de Cultura tem a ver com a nossa perspectiva de olhar a cultura na sua forma mais ampla e abrangente. Aspectos que envolvem a memória e a preservação cultural, as tradições populares, as linguagens artísticas e a vida comunitária. Nos ocorreu que pensar programações e projetos em salas fechadas, ensimesmados em ideias e vivências semelhantes às nossas, nos faria dialogar apenas com uma parte das pessoas, uma “bolha”. A cultura está viva e pulsa nas ruas, pois sua natureza é dialógica. E se a cabeça pensa onde os pés pisam, precisávamos correr trecho.

Estávamos dispostos a entender os hábitos e práticas culturais das pessoas do nosso território perguntando diretamente para elas o que gostariam de fazer e quais as dificuldades que as impediam de estar em espaços de cultura ou de participar pontualmente de atividades. Era também do nosso desejo, desmistificar estigmas e estereótipos que simplificam a vida das pessoas periféricas, como uma vida limitante e sem reflexão sobre suas próprias práticas. A atuação cultural e comunitária na periferia, precisa se comprometer em dialogar com todos os públicos, passando pelas crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos, que são distintos não só pelas faixas etárias, mas também na perspectiva de gênero, raça, sexualidade, religião, local de origem.

Entretanto, um prática jocosa sempre nos assustava ao pensarmos nesse formato, visto que diversas pessoas que vinham dialogar e realizar trabalho de campo e

pesquisa nas periferias, utilizavam-se de uma lógica extrativista, que consistia em tirar os insumos, mas que nunca traziam qualquer devolutiva, não apresentavam suas conclusões, sumindo sem deixar rastro e depois saíam utilizando “a voz das periferias” para prestígio acadêmico de se tornar um especialista no assunto, ainda que aquela pessoa para nós, fosse apenas um forasteiro, um explorador.

Dado esse contexto, nos preocupamos que o Agente Comunitário de Cultura fosse pensado, desenvolvido e aplicado por moradores do bairro, que tinham relação com o território e que não fariam uso para benefício próprio e sim para pensar ações que fossem de encontro ao interesse comum e que pudessem transformar e ampliar ainda que parcialmente a participação do público. E se quem consome cultura adoece menos, estamos falando aqui de alargar nossa perspectiva de vida não só objetivamente, mas também no aspecto subjetivo. Principalmente, por estarmos cientes de qual lógica de vida se aplica na periferia, uma vez que, a expectativa de vida para um morador de um bairro nobre é de 24 anos a mais, do que um morador da periferia, como foi apontado em 2017 pelo Mapa das Desigualdades.

Mas vamos aos fatos, o que aprendemos sobre os hábitos culturais das pessoas do nosso território, depois de conversar e dialogar com cerca de 300 pessoas? Muita coisa! E quero compartilhar algumas percepções que até hoje vem transformando nosso olhar e atuação.

  • A maioria das pessoas tem origem nordestina ou é filho de alguém que é migrante, ou seja, toda festa ou manifestação cultural que dialoga com tradições nordestinas tem uma ressonância forte nesse público;
  • A questão da família é algo importante e valorizado, uma boa parte disse ter como hábito aos finais de semana reunir a família ou visitar parentes, seja para fazer o tradicional churrasquinho, festejos de quintal ou colocar a conversa em dia;
  • As mulheres que foi o público majoritário da entrevista (por serem quem estavam em casa nos horários das visitas) disseram ter interesse em atividades físicas e que se relacionem com a questão de melhorar a saúde;
  • As mulheres também alegaram dificuldade em se dedicar a determinadas atividades por não terem com quem deixar seus filhos, ou seja, espaços em que acolha também as crianças é fundamental para a vida cultural de mães e mulheres que são responsáveis pelas crianças;
  • Um número expressivo nos relatou que a falta de uma companhia para realizar atividades também é um fator que impede de se inscrever para alguma atividade, principalmente quando a pessoa não conhece ninguém;
  • As mulheres demonstraram um grande interesse em atividades culturais das mais diversas (artes visuais, dança, canto, passeios, circo, capoeira, teatro, ballet, etc) para as crianças, compreendendo o quanto fazer atividades culturais é importante para os filhos e netos, para além de ir à escola;
  • A maioria das pessoas disse que gostaria de participar de atividades culturais que envolvesse passeios e viagens;
  • A falta de dinheiro e a falta de tempo foram colocados como os maiores impeditivos para realização de atividades culturais;
  • A maioria das pessoas não citou nenhum equipamento público de cultura no território ou nos arredores, o equipamento mais citado como tendo alguma prática cultural foi a própria UBS;

Para além dessas percepções compartilhadas que são mais gerais, gostaria de contar a história da Dona Edileuza. No dia da visita a casa dela, ela ofereceu café e disse para ficar à vontade. Dona Edileuza, estava cuidando do seu neto que na época devia ter entre 06 e 07 anos. Ela foi muito receptiva e tem uma capacidade de se comunicar muito boa. Dona Edileuza é pernambucana e já me identifiquei de cara por ser meu estado de origem. Pois bem, Dona Edileuza, entre responder uma pergunta e hoje, me fez uma pergunta que ecoa na minha cabeça até hoje: – Minha fia, o que é que é cultura? Eu me lembro de ter ficado pensando por uns quatro segundos, afinal, como eu poderia responder? E me lembro que a primeira coisa que veio à minha cabeça foi: “- Dona Edileuza, a cultura é o jeito que a gente vive, as coisas que a gente faz ou gostaria de fazer, mas antes de tudo cultura é um direito de todas as pessoas!” E aí a conversa foi longe…

Contei essa história para desmistificar que as pessoas não sabem ou não conhecem o que é cultura, o que existe ainda é a falta de informação e politização que a cultura é um direito, um direito tão fundamental quanto qualquer outro e que precisa estar na ordem do dia, como o arroz, o feijão e a mistura.

Dando um salto no tempo e passando para 2024, é notável que passamos por muitas transformações. Vamos precisar olhar para a conjuntura e como continuamos a ser afetados pela dinâmica social, econômica e política novamente, especialmente no campo da cultura temos o avanço da terceirização como uma ameaça iminente, o sucateamento das políticas públicas de cultura e da própria secretaria, a perseguição a grupos e movimentos, a distributividade do orçamento que não obedece a uma lógica territorial e no campo simbólico tivemos também a destruição do Ministério da Cultura em âmbito nacional e seu retorno em 2023.

Contudo, o que quero trazer aqui é o que está visível aos olhos e que tem deixado marcas no tempo e no espaço. A geografia do território tem se modificado radicalmente ano a ano, com a construção de grandes prédios nas avenidas principais que dão acesso ao bairro e pequenos “predinhos” de 4 ou 5 andares, sendo construídos com velocidade visando o lucro com aluguéis caros e que vão pouco a pouco cobrindo o horizonte. Passamos por uma pandemia, que foi cruel e afetou muito diretamente a vida do povo nas periferias, a fome voltou a ser uma realidade assustadora. A carestia manifestada nos preços de mantimentos básicos. Perdemos muitas pessoas importantes, sejam familiares ou figuras notáveis no nosso território. Muita gente teve que trabalhar durante a pandemia e se podia sair para trabalhar, porque não podia sair pra tomar uma cervejinha no bar? Risco por risco, cada um escolheu o seu.

As relações comunitárias se solidificaram em meio ao desespero, a solidariedade foi um princípio bonito e fundamental que imperou nas periferias e muitos foram os espaços de cultura que ampliaram seu escopo de atuação para dar conta da emergência, distribuindo cestas básicas, captando recursos, recebendo doações, como foi o caso do próprio Bloco do Beco. Várias pessoas, com traumas e medo de sair de casa, mesmo depois que a pandemia acabou, se é que ela acabou de verdade, pois a cada semana, novas gripes, viroses e outras coisas tem lotado as UBS. Passamos pela era das lives, com shows ao vivo na internet de vários artistas e a consolidação dos streamings, assistindo filmes recém lançados sem sequer sair de casa. Mas cultura é só isso? Entretenimento? Temos uma necessidade humana inata de socialização. Acho que essa ninguém derruba, não nas nossas quebradas. Derrubamos muros e ampliamos portas. Juntamos criança, velho, mãe, avó, adolescente e jovens no mesmo espaço. Abolimos banheiro com gênero pra ficar igual como é em casa e todes são absolutamente bem-vindes. E botamos o bloco na rua, depois de anos sem a alegria do carnaval. E assim, a contragosto de alguns e expertise de outros a cultura permanece viva, pois onde houver uma festa de quintal, um batuque, uma criança aprendendo capoeira ou uma jovem aprendendo a mexer na câmera para narrar suas próprias histórias, o princípio de transmutação da cultura está vivo.

Minha definição é que a periferia ainda vive sua própria lógica, e se de um lado é o trabalho ou a falta dele que dá o tom, do outro a tônica continua sendo a luta pela efetivação de direitos básicos, de dignidade para o povo. A gente luta para ser cidadão como qualquer cidadão dessa cidade. O direito à cultura ainda é pífio, mas ele se manifesta e se perpetua nos lugares de resistência.

E nós que acreditamos, criamos, produzimos, educamos e lutamos pelos nossos territórios, seja no Jd. Ibirapuera ou em qualquer outra quebrada, somos, sem dúvida, Agentes Comunitários de Cultura de um futuro que acontece agora.

 

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