Porque realizar um Censo amostral pelo território? A perspectiva da Escola
Elenita Santana de Almeida - Diretora de escola da Rede Municipal de Educação.
Na esteira das grandes expansões territoriais e do surgimento dos Estado modernos, entre cenários de precariedades, revoltas populares e separatismos, as estatísticas aparecem como uma ciência de Estado capaz de fornecer instrumentos para o exercício de controle de realidades ainda que estas estivessem a considerável distância dos grandes centros do poder e das grandes decisões. Com o tempo, tais ferramentas (os números, dados das populações, territórios, conjunto de realidades), ainda rudimentares passam por processos de refinamento e aperfeiçoamento que as revestem de significado e imprescindibilidade para o exercício do governo dos povos.
No contexto brasileiro, entre fins do período imperial e início da República, a DGE (Diretoria Geral das Estatísticas) fundada em 1871, encarregava-se de produzir os dados necessários para se conhecer as realidades mais distintas do território nacional, inclusive na tentativa de se constituir uma unidade nacional, possibilitando o gerenciamento das crises e revoltas internas. Esse trabalho seguiu após os anos 1930 facultado aos ministérios do governo e ao IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), este último fundado em 1936.
Sobre o IBGE, importante destacar em sua história recente os desafios levados a termo pelo sucateamento imposto às políticas de coleta e tratamento das informações que colocaram em risco a aplicação e disponibilização do Censo mais recente que demandou decisão judicial para que ocorresse.
Se por um lado as generalizações produzidas a partir dessa ciência de Estado incorrem como instrumentalização das ferramentas de controle do Estado, ao mesmo tempo possibilitam a construção da resposta do poder público aos problemas locais. Dito isso, realizar ou não realizar censos, amostras e pesquisas populacionais também se configura como uma política de reconhecer ou não reconhecer as realidades de um território tão vasto e singular quanto o Brasil. Decorrente dessa postulação, a construção de políticas públicas para, por exemplo, a saúde de populações indígenas passa pela decisão de enfrentar ou tergiversar sobre essa realidade, a partir da prática de uma alienação voluntária. Ora, se não se conhecem os problemas de tal grupo populacional, como ou porque enfrentá-los?
No que concerne à Educação, os principais dados socioeconômicos são obtidos, de forma geral, em processo complementar as avaliações em larga escala e usados para tentar se reconstituir, não sem alguns problemas quando a realidade do estudante é utilizada para justificar/explicar o desempenho do estudante. Nesse sentido, atribui-se ao indivíduo, mesmo que indiretamente, a responsabilidade pelo seu sucesso ou fracasso escolar. Em linha semelhante, ocorre a relação entre as escolas e suas notas. Apesar de as escolas serem inseridas em redes (estaduais, municipais), os dados destacados nos boletins pedagógicos de divulgação de resultados e posteriormente divulgados pelas grandes mídias em editorias sobre educação, destacam os desempenhos das Unidades desacoplados das estruturas de suas redes de ensino.
Por exemplo, a cidade de São Paulo realiza anualmente a Prova São Paulo bem como a rede estadual com a adesão de diferentes municípios, inclusive a capital, o Saresp (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar de São Paulo). Além dessas avaliações, as escolas públicas de todo o país realizam, bienalmente, o SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica). Além das avaliações externas, anualmente as escolas atualizam o Censo Escolar. Desse conjunto de instrumentos e mecanismos de coleta de informações é que decorrem políticas públicas de formação continuada, políticas sobre a alfabetização, ações de outros ministérios em complementaridade às da Educação, como vincular a frequência escolar aos programas de transferência de renda.
Esses dados juntamente com outros, como Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), Mapa da Desigualdade, além de pesquisas internas coletadas durante a matrícula e rematrícula dos/as estudantes, costumam compor o PPP (Projeto Político Pedagógico), mas não costumam colocar as escolas do território em relação. Por vezes, os agrupamentos estatísticos oficiais levam em consideração realidades distintas com desempenhos semelhantes, mas os dados não são usualmente relacionados entre a escola vizinha à nossa. Mesmo os dados coletados e tratados no interior da escola não fornecem material de comparação que viabilize contar a história daquela comunidade educativa (famílias, estudantes, docentes e demais funcionários em relação com as escolas do bairro).
Outra menção importante a ser feita aqui é a de que, com o passar dos tempos não apenas os Estados (governos) passaram a demandar mais pesquisas devido à complexidade das sociedades modernas, mas mercado e sociedade também se tornaram demandantes da produção de dados que auxiliam na compreensão e possibilitam intervir nos problemas reais que afetam as comunidades. É nesse sentido, o da comunidade, que entra o trabalho do Observatório Ibira 30. O de propor um levantamento de informações que revele em última análise um olhar da vizinhança sobre problemas e possibilidades em comum, invertendo a lógica demanda/demandante e constituindo possibilidades de elaborar metas enunciadas pelos próprios indivíduos. Nesse sentido, é uma política descentralizada de produção de conhecimento de “nós por nós”.
Logo, a guinada da proposta realizada pelo Observatório Ibira 30 se torna evidente à medida que possibilita a esses indivíduos a tomada da produção de (auto) conhecimentos. Permite-nos, por exemplo, compreender que apesar de 30% dos docentes entrevistados se sentirem desmotivados e de 48% discordarem muito que a remuneração é suficiente, 88% manifestam interesse em continuar no ofício. Dessa primeira compreensão outras perguntas se tornam possíveis, como o porquê, apesar da desmotivação e da baixa remuneração, ainda se mantém na profissão. Isso gera demanda por política pública, reitera o sentimento entre educadores de que não estão sozinhos: na escola ao lado alguém sente e pensa como ele e isso é importante.
É importante compreender que das 07 escolas que aderiram à iniciativa, o número de docentes pretos e pardos (50,6%) já ultrapassa o número de docentes brancos (47,8%). Isso significa representatividade para os/as estudantes que começam a se ver na figura do professor, da professora, considerando que, segundo o Mapa da Desigualdade de 2023, 36% da população da região onde as escolas estão inseridas se autodeclara preta ou parda. Esse dado aponta para outro valor inerente à pesquisa: estabelece relação direta com as políticas de cota de acesso à Universidade e ao serviço público e demonstra em efeitos práticos sua relevância para a busca de justiça social e equidade racial.
Trazendo para o aspecto da vizinhança, a amostra dos dados coletados permite relacionar que, guardadas as singularidades de cada Unidade, temos um conjunto coeso e que seria e é possível pensar em parceira, estreitar laços, pois lidamos no mesmo território e precisamos nos apoiar e constituir redes que possibilitem o enfretamento das realidades por vezes duras.
O desafio agora é expandir essa amostra, fazer novas perguntas e aumentar o espectro populacional pesquisado. Demandar às autoridades públicas políticas que deliberadamente melhorem o acesso e permanência dos estudantes e valorizem os educadores de nossa região. Uma aprendizagem coletiva que se inicia e que precisa ter continuidade para que haja a promoção de mudanças, pois se os dados têm o poder de desnudar realidades também concorrem para a produção de novas possibilidades.